O STF lançará tese geral e vinculante sobre a contratação de trabalhadores fora do regime da CLT. É mais um desafio para os direitos sociais e para as competências da Justiça do Trabalho, com impactos, também, na representação sindical. A depender do seu conteúdo, a tese poderá, ainda, comprometer a previdência social e impactar a arrecadação fiscal. (Leia mais: clique no título).
Por Francisco Gérson Marques de Lima
Professor na UFC, Doutor, Subprocurador-Geral do Trabalho
O STF sobrestou, em abril/2025, todos os processos da Justiça do Trabalho em que se discuta a contratação de trabalhadores por alguma modalidade de contrato civil ou comercial (contratação de trabalhador autônomo), o que inclui os casos de pejotização (Tema 1.389). Para o STF, está subjacente a liberdade das empresas em contratar trabalhadores sob a modalidade de contrato que melhor lhe convenha. Inclusive sob a modalidade de PJ, da qual decorre a prática da “pejotização”. E é exatamente esta a questão central a ser discutida, embora a matéria tenha amplitude maior, envolvendo outras formas contratuais, que podem reverberar em outras modalidades de precarização.
No Despacho do Min. Gilmar Mendes consta a delimitação dos aspectos que integrarão a tese: 1) a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços; 2) a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviço s, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos; e 3) a questão referente ao ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil, averiguando se essa responsabilidade recai sobre o autor da reclamação trabalhista ou sobre a empresa contratante. Como muitas Reclamações trabalhistas trazem a discussão sobre a relação de emprego, os Reclamados têm se utilizado de uma medida direta ao STF, também chamada, coincidentemente, de Reclamação, aumentando expressivamente o volume de processos na Suprema Corte. Isto constituiu a motivação principal para a determinação de suspensão dos processos na Justiça do Trabalho.
A tendência do STF, constatada em julgados turmários anteriores, é dizer que: (a) essa modalidade de contratação (cível) afasta o vínculo de emprego; e (b) quem julgará a matéria será a Justiça Comum. Se este entendimento prevalecer e se transformar em tese jurídica, com efeitos vinculantes a todo o país e sem os contornos devidos, impactará significativamente nas relações de trabalho e um esvaziamento nas competências da Justiça do Trabalho, haja vista que tem crescido significativamente a contratação de trabalhadores na modalidade pejotizada. Também acarretará consequências na representação sindical.
Cumpre relembrar que a pejotização consiste na prática adotada por algumas empresas que exigem que os trabalhadores possuam firma própria como pessoa jurídica (PJ) para que elas os contratem. Assim, se furtam dos ônus trabalhistas, porque a contratação não é de pessoa física, mas de pessoa jurídica, fugindo do conceito legal de empregado (art. 3º, CLT). Por outro lado, não sendo empregado, o trabalhador não tem direito a férias, 13º salário, descanso semanal, limite de jornada, FGTS, adicionais de horas, noturnas, de insalubridade ou periculosidade, verbas rescisórias da CLT, não tem direito a negociação coletiva, cesta básica, piso salarial, reajustes anuais etc. Isso porque o contrato não terá natureza trabalhista, mas civil ou comercial. Ou seja, não goza de nenhuma proteção social nem da representação sindical.
Como a relação jurídica não é de emprego, quem julgará os conflitos entre os contratantes será a Justiça Comum. Portanto, haverá uma transferência de competências para um ramo do judiciário que mal dá conta da imensidão de demandas que possui. E as verbas alimentares desses trabalhadores se depararão com o formalismo e a demora inerentes à Justiça Comum e às regras do Processo Civil.
Sucede que, na prática, a maioria dos pejotizados continua subordinada do mesmo jeito, recebendo ordens do patrão, tendo de cumprir horários, laborando sob uma supervisão cerrada e em total insegurança no trabalho. De fato, é comum encontrar-se formas simuladas de contratos, em que os documentos consignam uma modalidade de avença, mas, na prática, constata-se outra realidade. Assim, a discussão maior deve ser exatamente a necessidade desta verificação prévia, quando debatida entre as partes, o que só pode ser analisada a partir de evidências concretas.
A eventual liberação generalizada da prática da pejotização pelo STF poderá comprometer seriamente o regime de trabalho subordinado e o sistema previdenciário, que é baseado na solidariedade contributiva, onde todos contribuem para manter benefícios previdenciários, auxílios, aposentadorias, pensões etc. Em caráter generalizado, a substituição de emprego por contratos autônomos quebrará a Previdência e comprometerá a arrecadação fiscal. A propósito, os prejuízos para a arrecadação fiscal são evidentes, conforme demonstrado no estudo realizado por Nelson Marconi e Marco C. Brancher (Nota técnica sobre os impactos da pejotização sobre a arrecadação tributária. São Paulo: FGV, 2024. Disponível em: https://eaesp.fgv.br/producao-intelectual/nota-tecnica-sobre-impactos-pejotizacao-sobre-arrecadacao-tributaria. Acessado em 16.04.2025).
É de se alertar, ainda que rapidamente, os impactos que a generalização de contratações civis acarretará no FGTS, afetando empregados e empresas. Os recursos do FGTS, obtidos dos 8% que os patrões recolhem sobre os salários dos empregados, são utilizados para múltiplas finalidades sociais, como aquisição da casa própria ou amortização das parcelas financiadas, o que movimenta a indústria da construção civil; servem para aliviar os impactos das calamidades ambientais e de perdas de empregos, como ocorreu nas enchentes do Rio Grande do Sul, em 2024, em que foi autorizado o saque do FGTS como forma de minimizar os efeitos econômicos da grave situação ambiental; o mesmo ocorrera durante a pandemia da Covid-19, nos anos 2020-2021. De seu turno, os recursos do FGTS são largamente utilizados nos investimentos do Governo ao financiar grandes obras (PACs, por exemplo) e estimular a economia, como ocorreu recentemente com o empréstimo consignado, uma medida destinada a dar garantias ao sistema bancário e a estimular o consumo. Mas o FGTS só é recolhido nos contratos de emprego. Romper esta sistemática, atinge diretamente trabalhadores e empresários.
Como trabalhadores autônomos não recebem 13º salário, sua generalização, em substituição aos empregados, impactará seriamente os festejos natalinos e a economia no setor do comércio. Isto porque, sabe-se bem, o 13º salário é fundamental para a economia no final de ano e no pagamento das contas de janeiro. Sua retirada pode aumentar o índice de inadimplência. Na mesma toada decorrencial do trabalho autônomo, o importante terço das férias será retirado das parcelas que impulsionam a economia.
Se admitida a pejotização ampla pelo STF, espera-se que a Corte abra a possibilidade de, nestas contratações, poder ser analisada a burla à relação de emprego, em virtude da presença efetiva do requisito da subordinação, a atrair a nulidade contratual. É que a contratação de trabalhadores autônomos, em fraude ao emprego, não é permitida. De sua vez, a substituição de empregados por outros tipos de trabalhadores, sem critérios e desmesuradamente, poderá implicar em alteração profunda de um regime social de contratação, afetando os valores sociais do trabalho (art. 193, CF). E se isto ocorrer de tal maneira que, na prática, os autônomos sejam, na verdade, empregados disfarçados de trabalhadores não subordinados, é preciso descortinar o véu da falsidade contratual para reconhecer a nulidade e declarar a existência do vínculo de emprego.
Esta inteligência foi esposada pelo STF na ADI 5625, sobre a Lei do Salão Parceiro (Lei 13.352/2016), voto condutor do Min. Nunes Marques, em 28.10.2021. De acordo com o entendimento prevalecente no julgamento, “a celebração de contrato de parceria entre salões de beleza e cabeleireiros, barbeiros, esteticistas, manicures, pedicures, depiladores e maquiadores é constitucional, desde que não seja utilizada como forma de fraudar a relação de emprego”.
Outro aspecto diz respeito ao acesso à justiça, uma garantia constitucional fundamental do cidadão: tradicionalmente e por aplicação dos princípios centenários e universais do Direito do Trabalho, havendo prestação de trabalho pessoal, presume-se que seja de emprego, até prova em contrário. Por isso, a competência para analisar se, no caso concreto, há ou não relação empregatícia é da Justiça do Trabalho, uma justiça célere, que rapidamente chega à definição apropriada. Se a relação for cível, comercial ou consumerista, a Justiça do Trabalho encaminhará a causa à Justiça competente. Transferir esta competência para a Justiça Comum, que, apesar dos esforços de seus magistrados, não consegue dar a mesma rapidez aos tantos processos, implicará em inverter a presunção mencionada e submeter a definição da natureza contratual a longa demora processual. Certamente, a simples definição da natureza contratual (e, consequentemente, da Justiça competente) não demorará menos de 02 anos, mesmo nas varas dos Juizados Especiais. Após essa definição, é que o órgão competente dará andamento às demais matérias de mérito da causa. Por assim dizer, a partir daí é que, de fato, tem início o processo propriamente dito para a instrução das alegações das partes e análise de suas reivindicações. Essa demora, incompatível com a natureza alimentar das verbas pleiteadas, viola o princípio da duração razoável do processo, corolário do acesso à justiça. E a Justiça Comum receberá uma avalanche processual que dificultará ainda mais suas tantas atribuições.
Alguns fatos e comportamentos podem expressar evidências ou, no mínimo, indícios de fraude à CLT, por simulação contratual:
Como se vê, a decisão definitiva – isto é, a TESE – do STF tem a aptidão de mudar todo um sistema de direitos sociais, do regime geral de trabalho humano no Brasil, de alterar patamares de arrecadação fiscal, de influenciar no modelo de financiamento público a empresas e de impactar a economia e o consumo. Isso tudo sem nenhuma modificação direta no texto constitucional nem análise da matéria pelo Legislativo, mas provocando uma profunda mutação constitucional.
A tese do STF, se generalizada na admissão de contratos civis na prestação pessoal de serviços, poderá provocar a mudança completa de um modelo de relação de trabalho, substituindo o da relação de emprego, consagrada na Constituição Federal como a principal, por um modelo civilista e consumerista, sem proteção social e invertendo a ordem da regulação jurídica. Essa mudança paradigmática, sem nenhuma intervenção do constituinte, alterando o tablado pétreo das relações de trabalho, viola não apenas o texto constitucional, mas o seu próprio espírito, bafejado desde o Preâmbulo e projetado nas disposições que se iniciam com o art. 1º da Carta Magna. Se o STF seguir a linha da generalização aqui mencionada, estará se sobrepondo à vontade do constituinte originário e a toda uma história de conquistas sociais, à própria história dos trabalhadores.
Contudo, espera-se que o STF julgue com o bom senso que tem assinalado sua história nas questões sobre direitos fundamentais e nas de grande envergadura econômica e jurídica. Mas a Corte e seus Ministros precisam ser provocados e convencidos do que realmente está em jogo e da repercussão social de sua decisão neste relevante caso.
Portanto, este é um tema que deve ser discutido pelo movimento sindical e os trabalhadores, para que promovam mobilizações e articulações em defesa dos interesses sociais, combatendo os abusos e desvios da pejotização, que poderá, inclusive, comprometer seriamente o sistema previdenciário e a arrecadação fiscal, já que o regime de emprego proporciona uma série de contribuições sociais que permitem a sobrevivência de políticas sociais, econômicas e da Previdência. Isso interessa, também, às empresas, pois serão afetadas pela política de financiamento do Governo e pela mudança profunda que a economia sofrerá.